terça-feira, 22 de junho de 2010

SOBRE FACAS E PANELAS

Panelas do coração

Os cozinheiros se dividem em duas espécies. Aqueles que num incêndio salvariam suas facas e os que salvariam suas panelas. Acho que se esqueceram da terceira espécie, os que se matariam pelos dois. Reflitam. Quem são vocês?
Já me fiz a pergunta. Eu correria com minhas quatro panelas, todas com vinte e cinco anos de luta. Como elmos prateados de uma batalha espinhosa e não poucas vezes prazerosa. São panelas que uso quando cozinho sozinha para alguém que gosto. Lá descem elas do armário. São de aço brilhante, italianas e indestrutíveis. Panelas sérias para um métier sério.
A frigideira, uma panela bem alta para macarrão, uma comum, média, e outra de duas asinhas laterais, baixa, que dá até para uma pequena paella. Os cabos não esquentam, por mais que sejam aquecidos, a comida não gruda no fundo, não são pesadas demais, facílimas de lavar. Irradiam o calor por igual.
E eu sei a marca? Só me lembro que ao ver a nota, da Hammacher Schlemmer, Nova Iorque, houve choro e ranger de dentes. “Poderíamos ter ficado num hotel 5 estrelas e não neste muquifo com cozinha para você exibir este panelório!” Mal se sabia que durariam um quarto de século ou mais.
Vocês viram aquele filme, Hannibal? Ou leram o livro? São a sequência ao Silêncio dos Inocentes, pequena obra prima. O monstro canibal escapa da prisão e é quase impossível traçar sua trajetória.Como descobrir em que parte do mundo se escondera aquela peste? Muita inteligência do mal, fugas alucinantes, amor ao perigo. Mas um dos detetives sabia que ele gostava de cozinhar depois que lhe fizera uma pequena confissão (Comi o fígado dele com favas e um bom Chianti.)
Gostava só de coisas boas. O detetive começou a pesquisar os clientes mais assíduos das lojas de cozinha e descobriu os traços do bandido através desta loja americana de nome estranho que vende os melhores utensílios do mundo.O malvado não resistia a uma boa faca, ou panelinha no jeito.Deve ter feito a compra, apaixonado por alguma panela jeitosa, com cartão de crédito, endereço e telefone.
E tínhamos na família a panela na qual minha mãe fazia o bacalhau. Panelas como aquela acontecem nas melhores famílias. Feia, desengonçada, daquelas finas que logo se amassam, o cabo que queima se não se presta muita atenção, e que mora debaixo da pia para não causar má impressão às visitas. Bom, algum incauto deve ter jogado fora a bichinha. Com ela foi-se o bacalhau. Tinha a espessura exata para que o pão que a forrava ficasse queimado sem exageros, bebendo o excesso de azeite. As batatas cozinhavam juntas, em camadas, sem problemas. O tomate se misturava à cebola quase sem deixar vestígios, só mesmo a cor e o gosto. Carentes da panela sumida as nossas sextas feiras santas perderam a santidade única e úmida daquele bacalhau.
Já facas são questão de simpatia cortante. Você tem que olhar a faca e se sentir atraído.E a faca prolonga a mão, logo tem que estar em perfeita sintonia com ela. Multiuso. Corta, descasca, pica, separa, lacera, raspa, golpeia, fura, escama, serra. Preste atenção, qualquer ação na cozinha se torna um desespero sem boas facas afiadas. E aquela pequenina que tem a lâmina curva? Ela se aninha na mão pequena e obedece para descascar uma laranja com o mínimo de elegância, faz bifes razoáveis, pode desossar uma galinha sem causar vergonha, com a ponta extirpa excrescências de um osso, é capaz até de furar a extremidade de um ovo quente.
Há facas para todos os gostos, é claro, mas é muito difícil que você se apaixone por várias facas a um só tempo. É um instrumento monogâmico. Já a panela...
NINA HORTA
É COZINHEIRA, ESCRITORA E PROPRIETÁRIA DO BUFÊ GINGER. É AUTORA DO LIVRO NÃO É SOPA (UMA MISTURA SABOROSA DE CRÔNICAS E RECEITAS) E VAMOS COMER, COM 250 MIL EXEMPLARES DISTRIBUÍDOS PELO MEC PARA ESCOLAS PÚBLICAS DE TODO O Brasil


Recebi do meu amigo Valter esta gostosa crônica de Nina Horta. Eu também tenho cá as minhas preferências. Sempre que vou a algum lugar onde pretendo cozinhar saio carregando minhas tranqueiras de cozinha, as panelas adequadas ao que vou preparar, as travessas, e também facas. Detesto chegar numa cozinha e não encontrar as coisas que preciso. Como cozinhar macarrão pra várias pessoas numa panela delicadinha? Macarrão pede uma panela mãe,daquelas mães italianas de preferência. E depois de pronto pede uma bonita travessa pra que o molho possa se exibir.
As facas, estas eu não gosto das grandes. Prefiro as menores, até mesmo as de serra, me sinto mais íntima e mais confiante, mas tenho uma grande pra cortar as folhas de verdura, cortar carne e o que mais for necessário, nunca se sabe.
Quando viajo com a Expedicion Donde Miras levo todos os meus apetrechos de cozinha que é pra não ficar na mão. Já cheguei a fazer comida pra umas 50 pessoas e pra mim é uma grande realização. É como ter aquela família grande , cheia de filhos, cheia de "ranhetices", um gosta mais salgado, o outro sem cebola, o outro sem vinagre, aquele come demais e o outro não se lembra de comer, enfim , tudo que tem numa grande família. Aliás, muitos me chamam de Dona Nenê, porque dizem que me pareço com a Marieta Severo da grande família, o que no fundo era o que eu queria ter.
Falei demais. Aí vai a crônica.

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